Seu João
Seu João me criava o problema de atrasar as demais consultas quando ia sozinho ao consultório.
Não que falasse muito (era um tipo reservado), nem que seu estado de saúde exigisse (a evolução da enfermidade era lenta), mas porque eu gostava de ouvi-lo. Tinha estatura baixa, rosto redondo, barba cerrada, um jeito caipira cativante de contar casos, e uma visão prática do mundo que lhe permitia ir com naturalidade à essência das questões, a partir de detalhes irrelevantes.
Uma vez disse, para justificar o hábito antigo de ver TV até altas horas:
- Há coisas que encantam o olhar do homem: montanha ao longe, fogo crepitante, água corrente, tela de televisão.
Quando a esposa vinha com ele, estranhamente seu João se transformava noutro homem; a consulta se restringia às queixas, ao exame clínico e às recomendações habituais.
Era notável o desconforto que a presença dela lhe trazia.
No final de uma dessas visitas, ela sugeriu que eu receitasse um antidepressivo ao marido:
- Há seis meses, desde que tomou conhecimento da doença, o comportamento dele mudou da água para o vinho. Passa o dia com os papéis na escrivaninha do quarto, sem trocar uma palavra comigo; à noite, passeia pelos canais de televisão com o controle remoto, sozinho, no escuro. Se vai ao banco ou vai buscar a neta na escola, só percebo quando escuto a porta bater. Pergunto qualquer coisa, ele responde sim ou não, e mais nada! Coisa mais rara é dizer uma frase com sujeito e predicado.
- Não é caso para antidepressivo, doutor - disse ele, quando a mulher terminou.
Na consulta seguinte voltou só. Perguntei se era verdade que seu comportamento se modificara tão radicalmente. Respondeu que sim. Antes conseguia manter com a esposa
um relacionamento cordial; conversavam, iam ao cinema e visitavam o filho e a nora para ver a neta, a paixão da vida dos avós. Dormiam e assistiam à tv em quartos separados, porque ele não tinha paciência com as novelas e, além disso, era notívago. Com a doença, entretanto, tudo havia mudado:
- Quando descobri que tinha câncer, peguei uma antipatia por ela que o senhor não pode imaginar. Só de ouvir a voz, já fico irritado!
Seu João contou que seus pais brigavam constantemente; as recordações da infância eram povoadas pela imagem do cenho carregado do pai e das lágrimas disfarçadas da mãe. Na morou várias moças, até encontrar uma com quem achou possível formar uma parceria harmoniosa e duradoura. Os primeiros quatro anos de convivência demonstraram a sabedoria da escolha; respeitavam-se, davam-se bem sexualmente, e gostavam de ir ao cinema e sair para dançar com os amigos. Quando o filho nasceu, seu João chorou de alegria e considerou realizado seu sonho de felicidade: a mulher amada, o primeiro filho e uma carreira promissora na empresa.
Na véspera do segundo aniversário do menino, seu João resolveu sair mais cedo do escritório para ajudar nos preparativos da festa. Encontrou a casa em silêncio.
O menino dormia no berço, e a porta do quarto do casal estava fechada. Pé ante pé para não perturbar o sono do filho nem incomodar a esposa cansada, afrouxou a gravata, tirou os sapatos e encostou-se no sofá da sala, com o jornal.
Não sabe quanto tempo cochilou até acordar com os gemidos que vinham do quarto. Nos minutos que levou para se convencer da realidade, reconheceu a voz da mulher e a do melhor amigo dele.
Calçou os sapatos e saiu sem fazer barulho. Andou pela cidade das quatro da tarde até o dia clarear. Quando voltou, encontrou a esposa, o cunhado e os sogros assustados; até no necrotério o tinham procurado. Não se justificou; limitou-se a pedir que não fizessem perguntas:
- Já chega o que passei!
Ao ficar a sós com a mulher, não foi preciso dar explicações. Ela caiu num choro convulsivo, pediu perdão pelo ato impensado e jurou fidelidade eterna; não podiam virar as costas a tudo o que haviam construído, por causa de um momento de fraqueza que não se repetiria jamais.
Continuaram casados, e nunca mais trocaram uma frase sobre o episódio. Com o tempo, as lembranças daquela tarde no sofá perderam a nitidez, e o relacionamento do casal voltou à normalidade cotidiana, mas num nível de felicidade bem inferior, segundo ele.
No dia em que recebeu do médico a notícia de que era portador de uma doença incurável, seu João entrou em casa e encontrou a esposa assistindo à TV, com o bordado no colo.
Naquele instante, estranhamente, a recordação da mulher com o amante ressurgiu com força:
- Contra minha vontade, caiu uma cortina pesada entre mim e ela. Sem querer, fiquei arrependido de ter suportado humilhação tão grande por tanto tempo.
- O senhor não consegue esquecer? Que importância pode ter nessa altura da vida um fato ocorrido há tantos anos?
- Não deveria ter nenhuma, mas a única coisa em que consigo pensar desde que soube do diagnóstico é: por que não fui embora naquele dia, há trinta e cinco anos atrás?
- E por que o senhor não vai agora?
- É tarde. É como naquele filme: o trem para Berlim já passou.
[Drauzio Varella, Por um fio, São Paulo, Cia das Letras, 2004, pp.?]
retratos de memória, frases diversas, fotos, ilustrações, coisas sem importância alguma & variedades de todo o gênero
"Vem, Noite antiqüíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito. (...) "
[Álvaro de Campos (F. Pessoa), Fragmento de Ode I, in: "Fernando Pessoa: poesia", por Adolfo Casais Monteiro, 10ª ed., Rio de Janeiro, Agir, 1989, p. 76 (col. Nossos Clássicos)]
"(...) noites como esta, em que já não me será dado viver."
[Jostein Gaarder, "A garota das laranjas", Trad. Luiz Antônio de Araújo, São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 127 (citação possivelmente de outrem, constante também em alguma página anterior, provavelmente)]
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